Outeiro Secano em Lisboa

Fevereiro 22 2016

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No post dedicado ao meu querido amigo Manuel Benedito, descrevi uma das muitas histórias com que ele nos brindou, no almoço da celebração do seu 90.º aniversário. Porque são histórias da sua vida real e porque ele não se importa que eu as partilhe, aqui fica mais uma.

A Carris, empresa concessionária dos transportes urbanos de Lisboa, onde o Manuel trabalhou como barbeiro, foi fundada em 1872 por capitais ingleses, embora nacionalizada  após o 25 de Abril.

A sua frota era e é composta por autocarros, elétricos, elevadores e ascensores. Talvez por isso os seus autocarros antigos, fossem de dois pisos, tais como os que circulavam em Londres. A tripulação tanto dos autocarros como  dos elétricos, era  composta por dois operacionais, um condutor e um revisor, mais vulgarmente conhecido pelo “pica”, celebrizado numa recente canção do António Zambujo, “O Pica do 7”.

Entre os muitos colegas de trabalho, o Manuel tinha uma grande cumplicidade com o Zé Pinto. O Manuel foi sempre muito extrovertido, gostando de conhecer novas pessoas e novas terras, razão pela qual, acompanhou algumas vezes este seu amigo, à sua terra na Beira Baixa, mais concretamente na Aldeia do Bispo, concelho de Penamacor.

Decorria a década de cinquenta e na época, não havia a mobilidade de hoje, de modo que as viagens, faziam-se essencialmente de comboio. Quem queria ir para Penamacor, teria de apanhar o comboio da linha da Beira Baixa, o qual saía da Estação de Santa Apolónia em Lisboa, até à Estação da Guarda.

O comboio não terminava nem termina ainda, no centro da cidade da Guarda, fica nos seus arredores, num lugar chamado  Estação, sendo agora um dos bairros mais modernos da cidade.

A linha da Beira Baixa ainda que turisticamente não seja tão conhecida, quanto a linha do Douro, pese embora a CP e a Câmara de Vila Velha do Ródão tenham agora um protocolo de promoção desta linha, como do concelho de Vila Velha do Ródão, é também de extrema beleza, porque o seu percurso faz-se quase todo à beira do Tejo.

É só depois do Entroncamento, quando o comboio abandona a linha do norte que se entra propriamente na linha da Beira Baixa, e onde a paisagem ganha contornos de beleza mais interessantes.

Começa logo com as lezírias do Ribatejo e com  os arrozais do Vale do Sorraia. Depois aparece-nos o Castelo de Almourol, construído pelos Templários no século XII, situado numa pequena ilha mesmo no centro do leito do rio Tejo. A seguir é a vila de Constância, onde desagua o rio Zêzere e segundo a lenda, devido à sua beleza idílica, Luís de Camões ter-se-á inspirado, para escrever uma boa parte dos Lusíadas.

O percurso da linha continua, fazendo as mesmas curvas do rio, em cujas encostas não sendo tão ingremes quanto as da linha do Douro, no lugar das vinhas, nestas encostas, sobressaem oliveiras e outras árvores de fruto, como as figueiras.

O clímax de uma viagem na linha da Beira Baixa atinge-se, quando no virar de uma curva, nos deparamos com as Portas do Ródão, as quais segundo um concurso nacional recente foram classificadas, como uma das sete maravilhas naturais de Portugal.

As Portas do Ródão são uma formação geológica que, estreitam o leito do rio como numa espécie de garganta, surpreendendo os visitantes. Nas suas escarpas reside uma das poucas colónias de grifos em Portugal, uma espécie de abutre que, nidificam apenas nas escarpas do Ródão e nas escarpas do Douro Internacional, na zona de Miranda do Douro.

 

Ora toda esta paisagem era apreciada pelo Manuel Benedito e pelo seu amigo até Castelo Branco onde desciam, onde os esperava um primo do Zé Pinto que, era padre. Este tinha comprado havia pouco tempo, um Volkswagen, também conhecido por carocha, que os transportaria à aldeia.

Embora na época ainda não houvesse uma grande crise de vocação, o certo que este padre prestava serviço em várias paróquias. Pelo caminho foi-os avisando de que, nesse fim-de-semana, iria celebrar dois casamentos, mas que entretanto já avisara as famílias, de que ele tinha dois convidados.

No dia seguinte como o amigo preferira ficar em casa socializando com a família, só o Manuel acompanhou o padre. O primeiro casamento era por procuração, uma coisa vulgar na época. Esta situação acontecia, quando o noivo se encontrava ausente numa das ex-colónias ultramarinas, umas vezes em missão militar, outras como colono, fazendo-se então representar por alguém da família, esta prática era reconhecida pela a igreja.

A noiva do primeiro casamento era oriunda de uma família humilde, jovem simples mas muito bonita. Não trazia um vestido de cauda comprido, porque na época era um luxo acessível a poucas noivas, mas vestia um fato de fazenda claro, tapando a cabeça com um véu branco. Nas mãos segurava o ramo de laranjeira, em sinal da sua pureza e virgindade.

Só quando o padre se preparava para iniciar o casamento, é que se deu pela falta do representante do noivo. Feito um compasso de espera e como ninguém aparecia, o padre já um pouco zangado até porque tinha ainda outro casamento para realizar, virando-se para o Manuel, disse-lhe.

- Oh senhor Manuel! Importa-se de fazer de noivo?

O Manuel ficou um pouco atrapalhado com a pergunta, primeiro por ser inesperada, segundo porque já era casado, mas como sabia que isso não tinha implicações pessoais, disse-lhe que sim.

Nesse entretanto, apareceu o representante do noivo, ficando o Manuel dispensado de ter sido um noivo inesperado. Terminada a cerimónia os noivos foram à sacristia, a fim de procederem às formalidades obrigatórias.

É prática corrente que os serviços religiosos, com a exceção da missa de domingo, tenham um custo para os utentes e nessa paróquia, o preço para os casamentos era de noventa escudos.  

Para o pagamento do serviço o representante do noivo, entregou ao padre uma nota de cem escudos que de imediato a guardou na gaveta de um móvel, continuando a falar com o Manuel, não se apercebendo de que o homem se mantinha estático, como que à espera de alguma coisa.

Mas quando o padre se apercebeu da sua presença, disse-lhe que já estava tudo terminado, foi então quando o homem retorquiu.

- Sim, mas o senhor padre, ainda me não deu o troco!

A contragosto o padre abriu de novo a gaveta, devolvendo os dez escudos ao homem. Quando estavam apenas os dois na sacristia, o padre virou-se para o Manuel e disse-lhe.

- Oh senhor Manuel, já viu este filho da puta, sabe que comprei um carro novo e que ainda o não  paguei todo, mas veja lá se ele se esqueceu do troco!

Durante a viagem a caminho da outra paróquia, onde iria decorrer o segundo casamento, esse bem mais pomposo, porquanto, a noiva era da filha de uma figura pública, ligada ao desporto, o padre disse ao Manuel.

- Oh senhor Manuel, tenho muita pena da rapariga que acabei de casar, é tão jovem e tão bonita e o marido, é um viúvo, já com dois filhos. Em contrapartida, a que vou casar agora, é uma grande puta, digo-lhe eu.

O Manuel ouviu e concluiu que se o padre o dizia, é porque o sabia. Nesse fim de semana o Manuel acabou por não ser noivo, mas foi um convidado iinesperado, tendo comido e bebido como um abade.

 

publicado por Nuno Santos às 16:35

Um outeiro secano residente em Lisboa, sempre atento às realidades da sua terra.
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